À guisa de introdução


Este é um espaço de coleção de pensamentos para meu filho Antonio.

Categorizei as postagens por fase da vida em que imagino que serão úteis a ele, divididas em períodos de 7 anos. Assim, onde estiver marcado "1setenio" são para de 0 a 7 anos, "2setenio" para 7 a 14, e assim por diante.


terça-feira, 29 de setembro de 2015

Política

Filho, a política nasceu na Grécia e era a arte de dialogar entre as cidades (polis) que compunham aquela nação. O exercício da política era, portanto, altamente enobrecedor e patriótico, destinado a unir, pelo consenso, em prol de um objetivo superior.


Em geral, hoje não é mais assim: degenerou-se, pela nossa própria inferioridade intelectual e ética, na ciência da manipulação. Se antes a política tinha uma missão maior, hoje ela busca se justificar por si só: a busca e a manutenção do poder são razões suficientes. Para isso, não há escrúpulos, princípios nem medos: tudo é válido, de mentiras a assassinatos, passando, obviamente, por frequentes e vultuosos desvios de dinheiro público. Os políticos inescrupulosos se aproveitam da ignorância do povo, que eles próprios fazem questão de perpetuar, para prometer coisas impossíveis e enganar, roubar, humilhar o povo simples que é levado a confiar neles. Eu os considero o fundo do poço da decadência moral do planeta, a parte mais podre e suja de nossa humanidade.

Mas eles morrem - queiram ou não, eles morrem. E, embora tentem infiltrar seus filhos, netos e asseclas mais jovens para que repitam seus gestos detestáveis, queiram ou não também uma nova geração nasce e se desenvolve no seio da boa educação, silenciosamente, longe de seus olhos e de suas mãos. Não uma "nova geração" apenas em idade, mas em ideias. Uma geração mais conectada, mais cidadã do mundo, mais consciente e, portanto, incompatível com os vilipêndios que esses abutres têm imputado a toda gente honesta no mundo por tantos anos.

Sugiro, em termos de política, que você:
  • Não faça da política jamais uma profissão para que você não dependa de uma posição sobre a qual você não tem controle (por exemplo: de votos) para sobreviver.
  • Seja um ser político, independente de estar ou não formalmente na política. Envolva-se nas questões de sua cidade, de seu país, da humanidade. Não seja alienado para que não seja mais massa de manobra.
  • Dedique uma parte de seu tempo a educar, da forma que for. Só há uma coisa que faz tremer um político desonesto: o conhecimento do povo, que o faz agir.
  • Procure um grupo ético e com uma ideologia claramente mostrada a todos. Detectando desvios aos próprios princípios do grupo, proponha a retirada dos elementos dissonantes ou, caso não seja feita, desligue-se imediatamente.
  • Em um pântano totalmente contaminado, as botas devem ser grossas e não podem ter furos. Não comece, não aceite, não admita qualquer desvio ético no exercício da política. Nenhum. Basta uma única porta de entrada no caráter para que a podridão te corroa por dentro.

Você, meu filho, pode fazer parte desses novos ares do planeta! Pensar no ser político como pensavam Platão e Aristóteles é resgatar a essência mesma da vida útil em sociedade, com honestidade, seriedade, trabalho e objetividade visando o bem comum. O caminho é longo e pedregoso, mas pode esconder felicidades imensas em saber-se útil a todos e ajudar a mudar a face do mundo.

sábado, 26 de setembro de 2015

Saber pedir

Meu filho, todo mundo está sempre pedindo alguma coisa para alguém. Vivemos num mundo de pedintes mais do que de executantes, o que significa que é matematicamente impossível realizar os desejos de todos. Isso nos leva à questão: será que sabemos pedir ou nos viciamos em pedir tudo?


Na mitologia árabe pré-islâmica eram retratados seres sobrenaturais, chamados gênios (jinn), espécies de deuses capazes de interferir na vida humana, para o bem o para o mal, e que realizavam desejos. Os desenhos animados infantis Shazzan e Alladin mostram de forma bem humorada essas figuras. E normalmente a realização dos desejos concedidos pelo gênio é desastrada exatamente porque quem pede não necessariamente sabe pedir.

Não importa se você acredita em um ou mais seres sobre-humanos ou apenas na relação entre as pessoas, calibrar o que e como se pede é essencial para que consiga atingir os objetivos que tem.
  • Não peça algo que você pode conquistar. O conquistar é, o mais das vezes, mais valioso do que a conquista em si, como para o viajante o caminho que pode ser mais útil do que o destino. Peça força para caminhar.
  • Peça o que você precisa. Nem sempre o que desejamos é o que necessitamos.
  • Não peça o que o outro não pode ou não tem para dar. Isso só causará constrangimento.
  • Seja simples e objetivo. Pedido complexo embute alta chance de frustração.
  • Aceite o que receber em resposta. O que for. Avalie se não é algo ainda mais útil e necessário do que aquilo que você tinha pedido originalmente. A vida traz essas surpresas às vezes.

Por fim, cuidado com o que você pede - você pode ser atendido!

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Ser / Estar

Filho, em inglês, em francês, em alemão e em muitas outras línguas não há distinção entre os verbos "ser" e "estar". A língua portuguesa (e a espanhola) é muito rica também nesse ponto, estabelecendo uma importante diferença entre os dois conceitos, que você deve transportar para a sua vida.


Você diz que ESTÁ em casa ou É em casa? Ninguém tem dúvida de responder que está em casa, porque tem a perspectiva de, alguma hora, sair de casa ou, mesmo que não tenha, sabe muito bem que a casa não é uma condição dele. Você diz que É alto ou ESTÁ alto? Normalmente quando se é criança, o verbo é o estar - "nossa, como ele está alto!" -, enquanto que quando adulto usa-se o ser - "ele é bem alto!", porque quando adulto você não espera crescer mais.

A diferença entre os verbos, portanto, é a transitoriedade, ou, de outra forma, a impermanência. 

Essa é uma questão antiga na Filosofia: já em 500 a.C., dois filósofos gregos - Heráclito de Éfeso e Parmênides de Eléia - divergiam frontalmente sobre a mutabilidade do ser. Heráclito dizia que tudo era ESTAR: "ninguém se banha duas vezes no mesmo rio" (a água do rio é outra, você é outro, o momento é outro); Parmênides, ao contrário, dizia que as mudanças eram ilusões e tudo era SER, uma essência unitária, imutável, perfeita. Mas será que não há entre eles um ponto de equilíbrio?

Em nós, filho, há uma parte que consideramos condição transitória, externa, e outra que consideramos imanente, parte de nós, que nos define. As pessoas têm limites diferentes para as duas coisas e isso diz muito sobre elas. "Eu SOU juiz" vs. "Eu ESTOU juiz / Eu TRABALHO como juiz" são frases completamente distintas. O primeiro acha que ele e um juiz são a mesma coisa sempre - quando ele toma banho ou faz cocô ele continua sendo juiz; o segundo separa a sua essência da sua profissão. Isso pode ocorrer em nível ainda mais profundo: "Eu SOU mulher" vs. "Eu ESTOU mulher". A primeira abordagem entende que a condição de mulher é permanente, que define sua essência; se a pessoa for, por exemplo, reencarnacionista, pode entender que essa essência ora se manifesta como homem ora como mulher, então ela está mulher - amanhã poderá estar homem.

Quem É não precisa se mover; quem ESTÁ tem para onde melhorar.

Como regra geral, medite:
  • Pergunte-se sempre quem você É. Sempre que achar uma resposta, antes de aceitá-la, pergunte-se se você não pode apenas ESTAR assim e reavalie, se for o caso.
  • Sua profissão não é o que você É. Sua condição social não é o que você É. Suas características orgânicas não são o que você É.
  • O outro que está interagindo com você também, em algum grau, É. Procure enxergar essa essência no grau de profundidade que ele se coloca e dialogue o mais próximo possível da essência e o mais longe possível da transitoriedade de sua manifestação.

A estrada para ir do PENSAR SER para o SABER ESTAR encontra-se resumida na máxima de Tales de Mileto: "Conhece-te a ti mesmo". Percorra-a com paciência e sabedoria, meu filho. Ela te levará à sua própria libertação e, no fim dela, você encontrará alguém que te espera há muito tempo: você.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Chilique

Filho, nem todas as pessoas possuem o mesmo grau de educação, de respeito e de civilidade. Algumas acham que o mundo deve servi-las e não se conformam quando isso não acontece. É quando elas dão chilique, faniquito, fricote, piti, surtam ou ficam histéricas - chame como quiser.


Eu criei um protocolo muito pessoal para lidar com esses rompantes e gostaria de compartilhar com você para que aproveite o que achar bom.

Todo mundo tem direito a um chilique por ano. Nesse primeiro faniquito,  respondo em particular, com toda a educação, entendendo que pode ter sido um momento de descontrole passageiro por motivos sérios e que não devo afligir quem está aflito. A partir do segundo piti no mesmo ano, a história é diferente. Passa de um fato isolado a um comportamento e precisa ser controlado. Para esses casos:
  • Use o mesmo fórum em que foi interpelado.
  • Permaneça calmo.
  • Se você errou, peça desculpas logo no início. Se não errou, não peça, não se justifique.
  • Fale baixo, firme e pouco, sem grosserias ou ofensas.
  • Olhe nos olhos de quem deu o chilique o tempo todo.
  • Deixe clara sua reprovação ao fricote independente do mérito do assunto.

É preciso que você deixe evidente, filho, de uma forma civilizada, que não é tolerante com pitis e que condena essa forma de comunicação. Uma posição morna fará com que os outros tenham a falsa sinalização de que você está disposto a ouví-los a toda hora. Não deixe que façam seu ouvido de penico.

Sendo sóbrio e firme perante os faniquitos alheios, todos entenderão que você busca, clivilizadamente, o equilíbrio e o resultado útil, e te respeitarão por isso. É claro: não se esqueça que para fazer isso tudo, você mesmo não poderá dar chiliques. Para você, a tolerância deve ser zero por ano.

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Alavanca

Filho, foi Arquimedes de Siracusa, no século III a.C., que disse: "Dá-me uma alavanca e eu moverei o mundo!". Mas o que será que o grande matemático grego quis dizer com essa frase?


A alavanca é um instrumento muito útil: se aplicarmos nela uma força à distância certa, conseguimos levantar (pouco) pesos enormes do outro lado. É assim que funciona uma brincadeira de gangorra no parquinho: quem é mais pesado tem que sentar mais próximo do apoio para que o outro consiga erguê-lo. É uma visão física desse aparato. Mas será que conseguimos tirar dele mais alguma lição?

Para remover os problemas pesados da vida, considere usar uma alavanca desta forma:
  • Ache a haste certa: é o segredo da boa alavanca. A haste são os conhecimentos de que você dispõe para o trabalho. Caso você identifique como necessário algum que ainda não possui, não adianta seguir em frente. Adquira-o primeiro.
  • Encontre um ponto de pega (ponto-chave) no problema: é onde você vai agir e acompanhar o movimento. Precisa ser, ao mesmo tempo, visível a você e efetivo para a solução.
  • Busque um ponto de apoio: a base da alavanca suporta todo o peso do problema somado à sua força. Ela é o conjunto dos seus princípios e valores. O solo não pode ceder com a pressão, senão o movimento será só aparente e não resolverá o problema verdadeiramente.
  • Calcule a distância: é preciso saber que quanto mais pesado o outro lado, mais distante você precisa estar para movimentá-lo. Não tenha pressa, analise o problema sob uma óptica tão mais ampla quanto mais complexo for. Força demais à distância errada é inútil.
  • Avalie e replaneje: observe a todo instante como o problema se comporta e, se necessário, calibre o ponto de pega, de apoio, a força e a distância da ação.

Talvez Arquimedes tenha querido dizer muito mais do que ensinar o funcionamento físico da alavanca. Usá-la com sabedoria, no sentido do pensamento e da ação, também fará com que você "mova o mundo".

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Preconceito

Filho, o cérebro é ótimo em aprender e reconhecer padrões e depois fazer entre eles associações. É por comparação que funciona nosso aprendizado e nossa memória. Sem essas funções, que viabilizaram o desenvolvimento da inteligência e a prevenção dos perigos, nós não teríamos sequer descido das árvores há milhares de anos atrás e nos tornado humanos.


"Preconceito" (ou "pré-conceito") é todo julgamento prévio que se faz baseado nos padrões cerebrais que desenvolvemos, seja por experiência própria ou alheia, sem analisar uma situação em particular. Ele não é ruim em princípio: faz parte do instinto de conservação e do método de aprendizado humano. O problema é o seu uso para segregar as pessoas.

Suponhamos que você tenha sido assaltado algumas vezes sempre por pessoas do mesmo tipo físico (estatura, cor da pele, cabelo, gênero, idade, etc.) e que esse tipo físico combine perfeitamente com centenas de reportagens que leu. Seu cérebro fará a associação do tipo com "perigo: assalto" automaticamente, queira você ou não, ao se deparar com uma pessoa que preencha aquele estereótipo. Se estiver vulnerável, então, por defesa ainda automática, você buscará uma posição de segurança imediata. Isso é preconceito, mas com uma finalidade de sobrevivência. Não adianta: ele só se desfaz com uma outra sequência de contraexemplos até que seu cérebro despolarize e desfaça os padrões. Leva tempo. Nesse caso, o preconceito não é maldade, é autodefesa.

Agora, se você está frente àquele mesmo tipo que sua mente reconhece como pertencente ao padrão "assaltantes" mas em uma situação que não oferece risco, a situação é bem distinta. Não é mais o instinto que irá guiá-lo, mas deverá ser a razão. Seu cérebro emitirá um alerta, mandando com que você se afaste da pessoa (no sentido de protegê-lo), mas sua razão precisa ser superpor a essa tendência e, aí sim, você deve parar e analisar o caso concreto: transformar o pré-conceito em pós-conceito. Se você deixar com que o preconceito ultrapasse o limite da autodefesa, sobre a qual você tem muito pouco controle, ele pode se tornar:

  • intolerância: se misturado ao orgulho;
  • rotulação: se misturado ao simplismo;
  • humilhação: se misturado à incontinência;
  • discriminação: se misturado à covardia.

Todos esses desdobramentos são antiéticos, feios e são sintomas de um pensamento pequeno, incapaz de evoluir porque não admite rever padrões e conceitos.

Conheça-se, respeite os padrões criados por seu cérebro, mas tenha inteligência para questioná-los, evitando generalizações, a toda hora. O preconceito no sentido literal precisa existir para a sobrevivência, mas sua exacerbação é contrária à vida em sociedade, ao amor e ao progresso. Honestidade consigo mesmo e respeito para com o próximo: eis o caminho para domesticar o preconceito, deixando-o em seu limite de utilidade.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Você terá vergonha!

Filho, as gerações mais novas sempre julgam as atitudes das gerações mais antigas. Em alguns casos, com orgulho, em outros, com vergonha. E ainda bem que é assim.


Hoje, por exemplo, são, no mínimo, mal vistas algumas posturas comuns à época dos seus avós:
  • esportes com matança de animais, como tourada e safari
  • discriminação oficial por gênero, religião ou orientação sexual
  • animais silvestres mantidos em cativeiro
  • poluição indiscriminada do ambiente e desmatamento em prol do "progresso"
  • fumo em locais fechados

Você também provavelmente terá vergonha de coisas que hoje são comuns:
  • comida "lixo", principalmente fast food
  • pessoas morrendo de fome
  • queima de combustíveis fósseis
  • matar animais cruelmente sem se importar com seu sofrimento
  • uso de materiais não biodegradáveis
  • coleta não seletiva de lixo
  • desperdício de água

Também seus filhos terão vergonha de coisas que possivelmente sua geração ainda fará:
  • altíssima desigualdade social
  • seres humanos matarem seres humanos, em especial em guerras
  • matar animais, seja para que finalidade for

Tenha visão crítica sobre o que vai fazer profissionalmente. Não se esqueça que esse exercício do que será visto com vergonha é um termômetro para escolher entre uma profissão do passado, do presente e do futuro: as do futuro ajudam a construir o amanhã, as do presente ajudam o mundo a funcionar hoje e as do passado nos prendem ao ontem.

Onde você quer estar? Que mundo você está ajudando a construir com seu trabalho?

Por fim, entenda que você pode e deve ter vergonha de ações que não fazem mais sentido, mas deve sempre ter respeito às pessoas que, em qualquer lugar, executam suas tarefas com honestidade, dedicação e honradez.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Ódio

Filho, tenha cuidado quando ouvir e, principalmente, disser que "odeia" alguma coisa ou alguém.


Você pode sentir raiva de alguém por uma situação que fira seus princípios, sua educação, seu senso de justiça ou mesmo seu orgulho. Mas isso não é ódio. O ódio está para a raiva como o rio está para a chuva. A chuva pode ser forte e gerar uma queda d'água grande, mas lava e passa. O ódio é água corrente permanente, que vai corroendo sem cessar as margens de nossa própria essência.

Você também ouvirá as pessoas dizerem que o ódio é o sentimento oposto ao amor. Não é. O oposto ao amor é a indiferença. E atenção ao que te digo: não se odeia senão quem é capaz de tocar seu coração. Há um ditado espanhol que diz: "El odio y el amor parientes dicen que son. Aunque tan diferentes, al fin también son parientes el diamante y el carbón". Nada mais verdadeiro.

O ódio é veneno respirado por quem o gera, intoxica o corpo e corrói a alma, cega e amarga a vida. Alguém te decepcionou muito, te traiu os mais profundos sentimentos, abusou do seu amor? Ao menos deixe com que carregue consigo o peso do que fez. É um problema dela com ela mesma, ainda incapaz de entender os mecanismos do bem na vida. Não transfira esse peso a você. O ideal é que busque esquecer. Se possível, perdoe. No futuro, com mais maturidade, reconcilie-se.

De todos os inimigos que você pode ter, só de um você deve ter medo: você mesmo. O ódio te torna inimigo de si mesmo.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

A onda (de Tahr)

Meu filho, você sabe que quando jogamos uma pedrinha em águas calmas são criadas ondas concêntricas que se espalham ao infinito. É apenas uma amostra do poder de uma onda: dependendo da frequência e da força com que é gerada, ela pode abalar prédios, cidades, planetas.


Em 1972 uma foto ficou muito famosa no mundo: uma menina de 9 anos fugindo de seu vilarejo no Vietnã após um bombardeio de napalm, uma covarde arma química que provoca queimaduras no corpo. Dizem que esta foto ajudou a encerrar a guerra.


Hoje em dia, redes sociais criaram uma espécie de "lago", interconectando as pessoas no mundo inteiro. E as águas do comodismo estavam tranquilas demais. A foto de nosso amiguinho Tahr foi a pedra arremessada nesse lago.

Não são mais os governos que se reúnem para decidir agir, são as pessoas, elas próprias, que tomam para si a responsabilidade e fazem, hoje, agora, levando os organismos oficiais a reboque.

Em poucos dias:
  • o primeiro ministro da Finlândia abriu sua própria casa de campo aos refugiados
  • centenas de alemães voluntários se posicionaram nas estações de Frankfurt e Munique para receber centenas de imigrantes com cartazes de "bem-vindos"
  • alemães e austríacos pegaram seus carros e cruzaram a fronteira para resgatar as pessoas
  • o papa mandou que todas as igrejas da Europa passassem a abrigar refugiados
  • a Marinha deslocou uma corveta brasileira e resgatou mais de 200 pessoas
  • times de futebol europeus passaram a arrecadar dinheiro para ajudarem os imigrantes
  • os Médicos Sem Fronteiras criaram uma força-tarefa de atendimento aos refugiados

E quantas outras coisas ainda virão, filho?

A poderosa onda de solidariedade não ajudará apenas aos que fogem do terror, mas poderá ter destruído outra onda devastadora que poderia estar nascendo, de xenofobia de um lado e aversão à Europa de outro, que poderia levar a uma enorme e destruidora guerra.

O amor destrói a multidão dos ódios. Faça o bem, filho, ele sempre cria ondas cujo alcance você jamais poderá imaginar, como a pedra não tem ideia da folha que movimentou quilômetros depois.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Sistemas de governo

Meu filho, a humanidade já testou alguns sistemas de governo ao longo da História. Gostaria de conversar com você sobre alguns deles. Conhecer conceitos, aplicações e erros poupa horas e palavras, principalmente quando surgirem os "iluminados" com soluções mágicas.


Um governo é necessário? Depende do povo governado. Uma coletividade utópica, altamente madura tanto em seus processos quanto em suas relações poderia, em tese, ser autorregulada: haveria governança sem governo. Quando aplicada a sociedades imaturas, egoístas, desrespeitosas, inconscientes e primitivas, como a nossa, a anarquia é sinônimo certo de caos.

Se o governo é exercido por um ente supremo - um rei, rainha, imperador ou imperatriz - o sistema é chamado monarquia ("governo de um só"). O perigo da monarquia é se transformar em tirania. O poder desse soberano antigamente era praticamente ilimitado (absolutismo) ou era reivindicado como vindo de Deus (teocracia). Como é impossível a uma razão medianamente desenvolvida entender uma força tão concentrada, os países que mantiveram a monarquia retiraram praticamente todo o poder do rei, sendo ele apenas uma figura de referência para o povo, comprometida com a nação acima de partidos políticos, de tal forma que dizem que ele "reina, mas não governa".

Quando um grupo governa, temos uma grande variedade de formas, das quais se destacam a aristocracia e a democracia. A aristocracia é o "governo dos mais capazes". Aqui o problema é definir "mais capazes". Outra vez: em uma sociedade de grau de maturidade muito maior do que a nossa, em que os critérios de seleção dos governantes fossem baseados em suas capacidades técnicas e éticas, a aristocracia poderia funcionar bem. Se "mais capazes" forem os mais ricos ou socialmente abastados, essa forma se transforma em oligarquia, em que um grupo governa apenas para seu interesse.

A democracia é o "governo do povo". Seu princípio de funcionamento é "uma pessoa, um voto". As decisões são tomadas pela maioria. Em sociedades desiguais, como a nossa, ela pode se degenerar na "ditadura da maioria", sufocando a liberdade. É o que acontece com muita frequência. Os "vencedores" não precisam sequer conhecer e pensar em argumentos diferentes dos deles, porque são a maioria e "os incomodados que se mudem". A democracia, portanto, não é um sistema de governo ótimo, é apenas o menos pior e mais simples para ser aplicado para o nível em que nós ainda estamos de progresso moral. Hoje nós terceirizamos a responsabilidade: depois de votar, a culpa passa a ser do político maldito que foi eleito e nós ficamos com a falsa sensação de dever cumprido. Parece suficiente?

Se juntarmos o diálogo e a participação mais efetiva à democracia, teremos talvez um passo possível chamado sociocracia: o governo da sociedade. As soluções precisariam ser consensadas em "círculos" decisórios que se tocam e sempre com vistas ao bem geral daquela comunidade. Votar seria um caso extremo, uma derrota, quando tudo o mais falhou. A maior participação geraria mais comprometimento, representatividade às minorias, forçaria maior conhecimento de causa por todos, aumentaria, assim, a criatividade e efetividade das ações.

Não se muda o mundo mudando a forma de governo. Sempre que se tentou isso, foi desastroso. Se muda o mundo mudando as disposições nas pessoas, que, por sua vez, poderão propor melhorias. Espero que sua geração, filho, de posse de novas ideias, possa nos ajudar a evoluir na governança, fazendo com que possamos dar um salto de qualidade como humanidade - verdadeiramente.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Tahr

Filho, ontem uma chocante imagem do corpo de uma criança numa praia da Turquia rodou o mundo. Ela estava junto com outras 11 pessoas em um barco de refugiados fugindo de um grupo islâmico radical rumo à Grécia. Peço licença a você, meu amor, mas hoje eu vou escrever para essa criança, que vou chamar de طاهر (lê-se "Tahr") que, em árabe, significa "inocente, puro".


"Querido Tahr, ontem a parte do mundo que conseguiu dormir não tirou da mente a sua foto deitado na praia. Tivemos que olhar várias vezes porque você, com sua roupinha colorida, seu sapatinho certinho, sua posição de dormir, parecia muito com nossos filhos.

Ao contrário das imagens de guerra, numa praia calma, no silêncio da Natureza, sereno, lá estava você, depois de todo esforço para fugir do radicalismo louco, com o corpinho intacto, simbolicamente de costas para a humanidade.

'Vira, Tahr! Acorda! Levanta! Está tudo bem!', deve ter gritado aquele soldado turco que foi enviado para te pegar na praia. O mundo todo pediu isso para a foto. Mas você não se mexeu.

Ninguém entendeu nada ainda, não é, rapazinho? Como é difícil explicar as coisas para os adultos, não é? Somos nós que estamos de costas, não você! Não foi você quem não nos olhou, fomos nós que não olhamos para você! Somos nós que estamos caídos, não você! Os choros que você ouviu, pequenininho, não são por você - são por nós!

Você lutou e venceu como um valente guerreiro uma batalha muito maior do que a sua própria vida: você se sacrificou como espelho para nossas misérias, nossa frieza, nossa hipocrisia, nossa indiferença, nosso egoísmo. Nossa desumanidade. Tahr, você é nosso herói!

Tivemos que olhar várias vezes porque você parecia muito com nossos filhos. Mais tarde, criança, é que tivemos a confirmação: você, na verdade, É cada um de nossos bebês. Você é o símbolo do futuro que estamos construindo.

Tahr, nosso bebê, muito obrigado! Você fez diferença. Vá em paz."

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Reciprocidade

Filho, a palavra "reciprocidade" vem da junção de duas palavras latinas: recus (para trás) e procus (para frente) e indica uma relação bidirecional, uma seta de dupla cabeça, ou "o que vale para lá, vale para cá". Mas até que ponto nossas ações precisam estar condicionadas às dos outros?


A reciprocidade mais conhecida é a diplomática: quando um país exige visto de entrada, taxa, procedimentos de identificação, etc., o outro também o faz. As exigências passam a reger a relação bilateral entre eles e, com isso, entende-se que se estabelece uma espécie de equilíbrio.

Com as pessoas normalmente ocorre o mesmo.

O relacionamento pessoal é regido por um amor de troca, chamado pelos gregos de philos (de onde vem a palavra "filosofia"). "Eu te amo se você me amar", "eu te amo, mas não me decepcione", "eu te amo, mas não pise no meu calo" são expressões comuns que ilustram esse gênero de sentimento. Nesse caso, reciprocidade pode passar a ser dependência e trazer ansiedade e frustração.

Por outro lado, é muito desejável que se construa pirâmides de sentimentos: em cima de duas pedras se pode colocar uma terceira, diferentes das primeiras e mais alta que elas. Com isso se cria, se inova, no campo do coração e das ações. É claro que esse trabalho conjunto depende da reciprocidade (ninguém piramida sobre uma pedra só), mas aqui ela assume caráter de parceria, de colaboração e seu potencial não é mais negativo: ela traz comprometimento, serviço conjunto e realização.

Outra vez, filho: entenda que pode ser bem diferente o que está por trás de um mesmo gesto.

Por fim, se, por um lado, os detalhes de seus relacionamentos podem ter um componente recíproco, tudo o que toca seus valores não deve, porque te trará conflitos íntimos e grande amargura: sua educação não pode depender da educação do outro; da mesma forma sua civilidade, sua honestidade, mesmo sua felicidade. Só quem muda você é você mesmo: não dê ao outro um poder que ele não deve possuir.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Hiena

Meu filho, a hiena é um animal bem interessante que chama a atenção de todos pelas risadas que dá. Mas o que ela tem a nos ensinar?


Em um estudo (hoje) recente, pesquisadores da Universidade da Califórnia entenderam que "em situações de competição, animais de posição inferior na hierarquia riem muito mais", ou seja, a risada pode ser, segundo eles, "um sinal de frustração".

Isto também ocorre com os povos humanos. Você perceberá que é muito comum o riso fácil de quem é dominado (não confunda com quem está oprimido). As sociedades menos seguras, menos educadas, que se sentem desesperançosas e abandonadas por seus governos corruptos, têm um riso mais solto que as mais desenvolvidas.

Dizem que o brasileiro é um povo muito solícito e agradável. Em parte é verdade. Em outra parte é o "complexo da hiena" de uma nação maltratada, inferiorizada, imbecilizada pelo estímulo da mídia à falta de espírito crítico, de espírito cívico. É a fuga sentimental de corações sem esperança no futuro, que depositam no alegria presente do sorriso frouxo a única escapatória de alguma satisfação. Vi esse mesmo comportamento em outras sociedades até mais humilhadas que a de nosso país.
  • Não acredite em todo sorriso nem em toda lágrima. As aparências podem esconder os motivos.
  • Não condene quem ri como uma hiena, mas não se torne um deles.
  • Não retire a pouca alegria que têm, mas indique um caminho bom de futuro.
  • Valorize a educação cívica como único passo possível para a regulação emocional social.
  • Preste atenção nas crianças e na espontaneidade sincera de sua risada.

O sorriso é um bem precioso quando usado como demonstração de carinho, de bem estar íntimo, de intimidade, de envolvimento. Torná-lo banal só o desvalorizará, desmerecendo também seus sentimentos como um todo. Aprende-se também pelo contraexemplo: não seja uma hiena.