À guisa de introdução


Este é um espaço de coleção de pensamentos para meu filho Antonio.

Categorizei as postagens por fase da vida em que imagino que serão úteis a ele, divididas em períodos de 7 anos. Assim, onde estiver marcado "1setenio" são para de 0 a 7 anos, "2setenio" para 7 a 14, e assim por diante.


quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Desproporcionalidade

Filho, há uma cena engraçada no filme Robocop 2, da década de 1990, que uso para começar nosso assunto de hoje: após receber nova programação, o policial-robô começa a ser amável com bandidos armados e extremamente duro com pequenos delitos. A imagem abaixo é de um cidadão alvejado por muitos tiros em torno de sua cabeça por fumar em local proibido, antes de ouvir a frase que ficou famosa: "Obrigado por não fumar!". Esse comportamento caricato parece estranho para você? Pois é, meu filho: muitas vezes vemos e fazemos o mesmo no nosso dia-a-dia.


A proporcionalidade é um princípio fundamental do Direito: uma punição precisa ser coerente com o crime cometido. Quantas vezes nós, por vergonha, por preguiça ou por medo não deixamos claro que não gostamos de certa situação, reagindo apenas genericamente? Por outro lado, quantas outras vezes, por nervosismo, por impaciência, somos desnecessariamente duros em supercastigos por coisas que nem são tão graves assim? Qual é a consequência de cada um desses comportamentos?

O excesso de permissividade gera repetição, seja por falta de entendimento de quem errou e te chateou, seja por certeza da impunidade. Você não gostou de algo que alguém falou e, ao invés de deixar isso claro, fecha a cara. Ou alguém tem comportamento inadequado no ambiente de trabalho e você nada diz diretamente para não "criar inimizade" - ao invés disso, faz comentários genéricos, aqui e ali. Você acha que os outros têm obrigação de "entender seus recados"? Não têm. Aí você cria outro problema que você não tinha: lidar com sua própria frustração por não ter sido "ouvido", sendo que, na verdade, nem sequer falou nada. Todo mundo perde.

O outro lado é quando sua reação é muito mais forte do que a ofensa. Às vezes essa desproporcionalidade se dá no mérito (atribuindo uma gravidade inexistente), mas a maior parte do tempo está na forma de se falar. Nesse caso, o resultado é o afastamento do outro. Ao invés de corrigir o erro, você amedronta e faz com que a outra pessoa entre na defensiva e passe a nem sequer acertar contigo mais, porque terá pavor de ouvi-lo e ser surpreendido por mais uma injustiça ou grosseria, no caso de errar novamente. Você não precisa atirar em quem está só fumando.

Considere, como no Direito, atenuantes e agravantes:
  • Se não há dolo, ou seja, se o outro fez algo sem intenção de maldade, sua reação deve ser verdadeira, assertiva, mas compreensiva, amigável. A secura, a frieza só se aplica ao dolo.
  • Se seu "criminoso" é réu primário, pode ser que desconhecesse por completo que cometia um crime contigo (cada pessoa tem suas "leis" próprias - o que é ofensa para um não é para outro). Leve isso em consideração e não seja rude com o réu primário. Ele precisa mais de esclarecimento e conhecimento do que de punição.
  • Em especial se a intenção do "contraventor" era brincar e a pessoa apenas foi infeliz, leve isso em conta também. Normalmente só se brinca com quem se gosta. Ele só precisa entender os pontos sensíveis sobre os quais você não gosta de brincadeira. Se você o punir muito exageradamente, ele começará a ter muita reserva para voltar a brincar com você, tornando sua relação com ele pobre, formal, distante, sem espontaneidade, fria, e o bem-querer entre vocês pode morrer de inanição. Certamente não é isso que você quer.

Por fim, não vomite em uma pessoa seu nervosismo com outras pessoas ou coisas. Se quiser desabafar com alguém, faça isso numa conversa, jamais numa punição desproporcional. A medida de toda ação, premiação ou punição, precisa ser tomada na exata conta do caso concreto. Não há justiça sem razoabilidade e não há razoabilidade sem proporcionalidade.

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Mão e corrimão

Filho, quando você quer subir uma escada, lança sua mão sobre o corrimão para que te impulsione. É um gesto nobre, necessário, alinhado com seu caminho, com seu progresso. Para isso serve a mão e o corrimão e, neste caso, a interação entre eles é perfeita. Você continua e não tira a mão do corrimão. O corpo sobe os degraus e a mão, que o ajudou a subir, se converte em âncora a impedir-lhe o passo.


Na vida também é assim: a todo instante você está lançando apoios na direção do seu futuro, por suas iniciativas, por suas necessidades, por seus sonhos, por suas visões e esse toque te conecta com coisas, situações ou pessoas. Quando essa mão bendita encontra um corrimão firme, se apoia e desperta em você a segurança de caminhar. O tempo passa e o corpo precisa continuar em frente, mas a mão não se mexe presa à velha marca. Sua mão amiga, antiga alavanca de progresso, tão boa e útil, acomodou-se ao local quente no corrimão e passa a ser o que começa a a te prender no passado.

Sinta, filho, quando essa situação chegar. Nessa hora, lembre-se do tempo passado em que você precisou lançar, no nada, a mão à frente. Lembre-se de sua coragem em estar no vazio por alguns segundos para poder subir. A mão é a mesma, o corrimão é o mesmo, mas você não é. Volte, com respeito, um olhar agradecido à mão e ao corrimão pelo enorme bem que te fizeram, mas informe-lhes que é imperioso seguir.

E largue. Sem medo. Nada tema. Deixe que, novamente, sua mão viaje no vácuo, comprometida com sua ascensão, com seu futuro. Quando encontrar outro corrimão, ele estará gelado ainda, você sentirá o choque, não será fácil, mas prossiga. E, desta vez, convide sua mão a caminhar contigo, deslizando pelo corrimão, mantendo, além da firmeza, a cumplicidade, para que você não precise soltá-la novamente.

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

"Levante-se e suba de novo!"

Meu filho, quando eu tinha 10 anos, caí e quase fui pisado por um cavalo que eu adorava montar. Seu avô Antonio, depois de se certificar que eu estava bem, embora amedrontado, ralado e chorando, ordenou: "Filho, levante-se e suba de novo! Agora!". Isso ocorrerá com você muitas vezes. Quero lhe explicar as sábias palavras do seu avô que, por mais de uma vez, me salvaram.


A vida é feita de montarias. Nossos pensamentos, nossos sentimentos, nossos vícios, nossas virtudes, nossas histórias, nossos traumas, nossos sonhos, nossos dogmas, nossa visão de mundo, nossa alma, todos são equinos internos que nos levam a jornadas variadas, em nosso interior ou até no mundo íntimo dos outros. Há vários fatores que podem te levar a ser derrubado e se machucar:
  • Inabilidade do cavaleiro. Não escolha um cavalo bravo demais para você. Saiba seus limites. Não se meta a cavalgar arrojadamente pensamentos que você não compreende, sentimentos com que você não sabe lidar, caixas de Pandora que você não saberá fechar. Para montar um cavalo selvagem, é preciso antes treinar com outros - da mesma linhagem - mais mansos. Não desista, mas vá com calma. Se for obrigado a montar um cavalo selvagem sem preparo prévio, não resista aos seus movimentos, trate a montaria como uma dança, transmita-lhe alternadamente confiança e ordem.
  • Inadequação da sela. Para uma boa montaria, é preciso uma sela adequada, de tamanho certo, instalada adequadamente. Isso significa que, sempre que possível, você não deve montar os cavalos no pelo. Invista tempo negociando o mínimo, mesmo sentimentalmente, essa interação. Peça licença para entrar, sempre que possível, no espaço alheio.
  • Destemperança do cavalo. O cavalo pode estar ferido ou traumatizado  Sinta-o com empatia. A montaria é uma combinação entre cavaleiro - ou amazona - e animal. Você deve respeitar o momento do cavalo, avaliando-o ao encontrá-lo. Não significa que você deve se abster de montar um cavalo arredio, mas que deve demonstrar que entende o motivo de sua chateação, mas que precisa cavalgá-lo, com respeito e honradez.

Nos cavalos dos outros, você deve ter cautela redobrada. Você não tem o direito de invadir o estábulo de ninguém contra sua vontade. Nos casos em que esse convite vier implicitamente, emocionalmente ou por profunda sintonia de almas, sem o consentimento total do racional, você deve ainda mais respeito profundo a essa terra sagrada - porque você estará sem supervisão. Se você entrou, se tornou responsável por ele também.

E você poderá ser derrubado. Se sua intenção for boa, sua ação for ética e seu objetivo for nobre, não desista. Se você não subir de novo imediatamente, mesmo ferido, no cavalo que te derrubou, filho, seu medo pode se tornar trauma e, em prejuízo de você e dos outros, você deixar de realizar coisas belas com pavor de ser pisoteado novamente. Por isso, não pense: levante-se e suba de novo! Na hora!

domingo, 25 de setembro de 2016

O futuro fala

Filho, como estarmos imersos em uma realidade física causal - ou seja, em que uma saída presente de um sistema depende sempre da entrada passada dele - dificilmente conseguimos imaginar o futuro como algo concreto que nos possa influenciar. E se houver sistemas não-causais que desconhecemos? E se o futuro nos falar incessantemente e nós estivermos surdos a ele? E se ele se mostrar e estivermos cegos? E se bastar levantar o véu ilusório da realidade para encontrarmos outra realidade? Deixarei as questões da metafísica de lado para conversar com você e o futuro que já construímos em nós: nossos planos, nossas visões, nossa imaginação. Como isso te impacta hoje?


Recentemente, um conhecido pesquisador estadunidense do MIT (Massachusetts Institute of Technology), Peter Senge, publicou um livro sobre o "campo do futuro" e como ele influencia a vida presente. Ele argumenta que o modelo mental de todos os grandes empresários inovadores não é construir o futuro a partir do passado, mas deixar com que o futuro "emerja" por si só, venha até você e lhe mostre o caminho. Mas como isso é possível?

Outro pesquisador do mesmo instituto, que desenvolveu a teoria de Senge (e a batizou de "Teoria U"), Otto Scharmer, diz que isso só é possível com 3 prerrequisitos, que listo aqui adaptados:
  • Mente aberta (Open mind): congelar seus paradigmas, suas certezas, mesmo seus conhecimentos objetivos passados, talvez seus princípios dogmáticos, para abrir-se para algo totalmente distinto, até ilógico num primeiro momento. O sinal de que isso está funcionando é quando o julgamento prévio daquilo que você acha absurdo vai chegando a zero e você se dispõe a analisar a possibilidade a sério.
  • Coração aberto (Open heart): entender que pode haver ansiedade e, por isso, rejeição àquilo que não conhecemos emocionalmente. Nosso "cantinho seguro", nosso "mar calmo", é muito mais cômodo do que as ondas e os ventos do mar, sem os quais o barco não pode progredir, não pode crescer. Abrir-se para ser surpreendido, até para ser ferido, é fundamental para que o novo possa tocar-lhe o sentimento.
  • Vontade aberta (Open will): a compreensão e o envolvimento não são suficientes se não nos dispomos a caminhar em direção ao nosso futuro. Nos levantarmos de onde estamos, deixando as roupas velhas para trás, abençoando-as e agradecendo-lhes a acolhida, e, mesmo com dor, darmos os passos para ir ao encontro do que queremos e/ou precisamos ser. A movimentação da vontade é a pedra de toque da realização. Um encontro com o futuro não realizado é uma perigosíssima e poderosíssima âncora no passado, que dificultará esse movimento mais à frente de forma bem contundente, sendo o prelúdio de frustração e infelicidade.

Poucos são o que, no mundo dos negócios, por exemplo - dizem os pesquisadores - são capazes de vislumbrar o futuro que já emerge. Menos ainda, digo eu, são os que, no campo íntimo, têm a coragem de fazê-lo. Mas é a melhor forma de evoluir sem espernear contra a Vida.

Não se engane com o canto sedutor do passado que te baseia. Tenha coragem de ouvir o que o futuro te grita. Abra seu pensamento, seu coração e sua vontade e, com respeito e agradecimento ao que você deixa para trás, firmeza e consciência tranquila, quando enxergar seu futuro, vá, filho: siga-o.

sábado, 24 de setembro de 2016

Perdoe-se

Meu filho, goste ou não, é inexorável: você vai errar; você vai se enganar; você vai ferir os outros, às vezes muito profundamente; você fará pessoas queridas chorarem; você pode até mesmo fazer isso algum dia por malícia ou até maldade. Igualmente inevitável: você vai se arrepender; você vai se culpar; você será muito mais duro consigo mesmo do que com os outros. Cuidado: você precisará se reconciliar com a sua sombra; você precisará se perdoar.


É importante que você tenha o seu momento de reencontro - por difícil que seja -, que deixe que a dor interna por haver falhado com os outros, com o mundo ou consigo mesmo percorra sua alma, tocando-lhe as feridas. Respeite-o. Não fuja dele de forma alguma. Faça isso em absoluto silêncio. Sozinho. Mas cuidado: não caia na armadilha de prolongá-lo, não cultive o luto, como forma inconsciente de fugir. Não permita que a culpa vire mágoa nem amargura. Ela existe para te impulsionar para cima, não para te atolar onde está.

Você é parcialmente bom e majoritariamente imperfeito. Todos nós somos. Aceite-se em suas virtudes e seus vícios. Não tenha medo de encará-los, de admiti-los a si próprio. Um ato ruim não te torna mau. Um ato mau não te torna irrecuperável. Dentre todas as coisas péssimas que te podem acontecer, a pior delas não é nem praticar um ato mau, é o congelamento, a inércia, a estagnação, é deixar de buscar, deixar de querer, deixar de viver, deixar de ser humano.

Digo ainda a você:
  • Investigue sinceramente sua intenção. Ela é mais importante do que as consequências. Se a intenção foi flagrantemente má, você deve se questionar o motivo e não fazer nada até que ela mude. Caso contrário, siga em frente.
  • Autoperdão não pode ser desculpa para imobilidade. Você precisa ter certeza de que quer melhorar naquele ponto. Se perceber que não, pare aqui até que isso mude.
  • Antes de resolver os ódios externos que gerou, você precisa acabar com seu ódio de si mesmo.
  • Peça desculpas sinceras, se puder. Uma única vez. Depois dela, substitua a palavra pela ação.
  • Repare o erro que cometeu, se puder. Senão, faça o bem equivalente à reparação a outro.
  • Aprenda com os seus erros. Essa sua utilidade. Se se recusar, eles te visitarão mais vezes. 

A luz e a sombra que coexistem em você só conseguem andar para frente de um jeito: de mãos dadas.

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Quem decide é sempre o coração

Filho, há alguns anos atrás, um neurocientista chamado Antonio Damásio fez uma descoberta inovadora. Pesquisou diversas pessoas com lesões na parte do cérebro onde as emoções são geradas. Todas apresentaram resultados cognitivos normais, exceto por um detalhe: não eram mais capazes de sentir emoções. O mais interessante, entretanto, é que elas também não conseguiam decidir mesmo coisas muito triviais, como o que queriam comer, embora pudessem descrever logicamente tudo o que se passava. A conclusão do estudo foi: as emoções são fundamentais para as decisões, mesmo para as que achamos absolutamente racionais. No fim das contas, quem decide é sempre o coração.



Se é uma realidade, convém não lutar contra ela: quem bate o martelo é sempre quem bate dentro do seu peito. Resta ao cérebro inteligente negociar:
  • O cérebro é medroso e se pauta no passado; o coração é valente e se guia pelo futuro. Entenda as diferenças antes de negociar.
  • Não meça forças com a emoção. Ela vai se esconder, você vai pensar que ganhou, vai começar a ser assaltado a toda hora do dia, porque o coração vai fazer greve e bagunçar suas pequenas decisões, e quando o cérebro olhar para o lado, vai ser atropelado sem chance de defesa.
  • Não distorça ou ampute a realidade para si mesmo, tentando se enganar. Ofereça argumentos honestos e balanceados. O coração costuma gostar de sinceridade e da justiça. Se ele perceber que está tentando ser enganado, vai decidir sozinho e pronto.
  • O coração não se convence, ele abraça ideias. Os argumentos racionais não são suficientes para ele. Para ter acesso aos emocionais, você precisará das ferramentas da meditação e do autoconhecimento.

Mas que a pobre massa cefálica não se sinta (?) preterida. Pode não parecer, mas o coração é seu melhor amigo, defensor e guerreiro. Às vezes a apavora, mas é o cara certo para estar no controle do botão das decisões.

Por fim, deixo um fantástico resumo do assunto, inspirado, poético e emocional - como não poderia deixar de ser - feito por Clarice Lispector:

Não me deem fórmulas certas,
Porque eu não espero acertar sempre...
Não me mostre o que esperam de mim,
Porque vou seguir meu coração!...
Não me façam ser o que eu não sou,
Não me convidem a ser igual,
Porque sinceramente sou diferente!...

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Cheiro de sangue

Filho, recentemente houve uma série de livros / filmes de uma saga de ficção de vampiros chamada Crepúsculo ("Twilight"). Abstraindo a qualidade da série, um personagem de lá me chamou muito a atenção: o Dr. Carlisle Cullen. Como bom vampiro, naturalmente ele não resistiria à luxúria de sangue humano, mas, surpreendentemente, tornou-se médico e só bebe sangue de animais para sanar sua sede, fruto de uma autodisciplina consciente constante. E você, filho, qual é o seu sangue?


Todos temos coisas, pessoas ou situações que nos movimentam internamente de forma muito forte, quase incontrolável, as reações viscerais. Por história, por vontade, por instinto, até por neurose ou psicopatia, os componentes de ação do nosso ser se juntam para atingirem esse objetivo comum: o coração é o tocador de obra, o cérebro o advogado de defesa, as mãos os operários-padrão. Você precisa saber que quando o cheiro de sangue passa sob o nariz do vampiro, ele será vítima de um complô interior poderoso em que a solução mais simples é ceder; a segunda mais fácil é fugir; a que eu proponho é a mais difícil.

Tudo pode viciar - até fazer o certo, fazer o bem. Nem todo vício é ruim em objeto, mas ser viciado é sempre ruim em processo, porque o vício aumenta a chance da inconsciência. Eu não estou fazendo para você, filho, uma satanização das nossas forças íntimas mais profundas nem daquilo que nos atrai fortemente a atenção. Não. Muitas vezes esse mecanismo é muito saudável e benéfico, além de prazeroso. Às vezes é a única forma que o Universo tem de nos tirar da inércia. O que eu estou querendo dizer é que, mesmo assim, você não deve abrir mão de sua presença no processo, nem que seja só para autorizá-lo. Mesmo que vá beber o sangue, faça com consciência.

Não quero que você tire da vida seu brilho, sua poesia, sua surpresa e que se torne um chato que quer analisar tudo sempre. Não. Deixe-se levar também pelo canto suave da realização de algo que ama, deleite-se com a satisfação de algo que curte, sem precisar deixar um guarda na porta o tempo todo. Ele não precisa ficar de plantão, basta um sobreaviso, disparado por gatilho da perda da capacidade de autocontrole. Mesmo que você perca o controle, mesmo que largue as rédeas do seu corcel, faça conscientemente. A regra geral é: o que é bom não tem medo da luz; o que é ruim adora os porões da mente.

Você terá seu sangue, filho. Identifique-o com honestidade. Encare-o. Mas o discipline em sua capacidade de te controlar. Quem manda no que você faz é você - mesmo que seja para bebê-lo. Se não quiser ou não puder fazê-lo, você pode até ser um médico sendo vampiro, mas exigirá trabalho íntimo de autoconhecimento, determinação e consciência. Se não conseguir se abster do sangue que julga que faz mal a você ou a outros, substitua-o. É difícil? É. Bem-vindo à escola do progresso!

"Esperienza, madre di scienza"

Filho, este é um conhecido ditado italiano: "Experiência, mãe da ciência". Há algum tempo gostaria de escrever a você sobre a maturidade, mas estava antes verificando em mim se essa força estava, ela própria, madura o suficiente para que se tornasse um conselho.


Sócrates dizia que ele era como os outros filósofos, sabia tanto quanto eles, mas era melhor do que eles tão só pela consciência de sua ignorância: "Só sei que nada sei". A maturidade é como o conhecimento: ela foge de você - quanto mais você adquire, mais desenvolve, mais longe fica seu objetivo. Não existe, então, nível suficiente - o que eu esperava não iria chegar nunca. A maior maturidade é a consciência da própria imaturidade.

Mas nem por isso a estrada da experiência deixa de te trazer impactos significativos. A primeira dela é a mudança de ponto de vista. Você já viajou para lugares onde há mirantes, normalmente com vistas privilegiadas, seja em montes, montanhas ou construções. Repare que neles alguém já pré-selecionou algumas vistas que considerou melhores - normalmente há lunetas instaladas ali. Formam-se filas para reobservar o já observado. Os comentários são os mesmos, os mesmos sustos, os mesmos sentimentos. Não que haja algo errado nisso - você pode jogar a moedinha e ver a vista pela ocular dos telescópios. O problema é que normalmente as pessoas se dão por satisfeitas com isso. Você não conheceu o lugar de verdade. Você trocou o lugar por imagens pré-cozidas do lugar. A maturidade faz fugir a pressa: você anda, senta, olha, olha para trás, conversa com as pessoas ali, sente o cheiro do lugar, respira, se insere, imagina. Ela, a experiência, faz fazer isso também com os problemas da vida, afastando a ansiedade, a impetuosidade, o julgamento, o óbvio, para colocar em seu lugar a mente aberta, a investigação, o novo.

Foi René Descartes, em seu O discurso do método, que estabeleceu as bases para o que hoje é conhecido como método científico. Prega-se que isso é, então, ciência. Não é. Por muito útil que seja ao desenvolvimento tecnológico, é apenas um método de investigação exterior. A verdadeira Ciência está no próprio significado da palavra: conhecer, ter ciência de algo. Tudo que existe possui diversas camadas de realidade. A mais superficial é a objetiva, a concreta. A mais profunda é a do significado. O método de Descartes só prescruta a primeira. Só a experiência com sua calma, com sua sensibilidade, com seu histórico, consegue penetrar as demais: como isso pode ser útil aos corações que aqui estão? que lições metafóricas aquele objeto traz para a vida? como essa coisa reage ao movimento do Universo?

Por fim, a maturidade lhe dá uma articulação a mais na sua própria câmera do mundo: ela vai permitindo que você volte a sua luneta para você, no sentido contrário do usual. O mergulho nesse mundo interior, rico, que interage, influencia e é influenciado pelo exterior, é essencial para a verdadeira evolução. O cientista é: o que conhece a si mesmo. O vencedor passa a ser: o que venceu e si mesmo.

Valorize nos outros e deixe que venha para você a maturidade, filho, para que ela seja uma ferramenta de seu próprio progresso e, então, de sua felicidade.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Decisão: Sim? Não. Não? Sim.

Meu filho, não se engane, não existe caminho bom ou caminho mau na vida. Existem escolhas. A qualidade da sua escolha está ligada ao conhecimento com que você a faz, à consciência que tem no momento de decidir, ao timing em que age e, acima de tudo isso e principalmente, à intenção com que você a preenche, que te dá uma visão do futuro.

 

Em toda bifurcação, quando você diz "sim" a um caminho, diz "não" a outro. Quando diz "não" a um, diz "sim" a outro. A resposta da Vida às vezes é "não" quando você pergunta "sim?" e "sim" quando você pergunta "não?" não para desencorajá-lo, mas para que você se lembre que é preciso sempre sacrificar algo a fim de obter outro algo. Não tente se enganar nem se deixe enganar quando só vir em uma estrada vantagens e na outra desvantagens - você está cego. Use o "talvez": pare, analise, sinta, projete, até que tenha maior clareza no que ganha e no que perde em cada um deles. "Talvez" é tempo. Use-o com sabedoria.

Mas não tente adiar sempre suas escolhas. Inércia demasiada também é decisão - normalmente a menos vantajosa delas. Quando se opta por não se optar por nada, delega-se para terceiros a rota do seu próprio futuro, o que é sempre temerário. A covardia em decidir cobra seu preço rápido e ele não costuma ser baixo.

As pessoas normalmente querem a soma das vantagens dos dois caminhos divergentes. Criam para si um cenário em que podem desfrutar de todos os bônus e não ter nenhum ônus. São como um carro que sobe na grama porque não soube optar pela estrada à esquerda ou à direita: se danifica, retarda sua chegada e passa por maus bocados.

As piores escolhas são entre dois caminhos bons. Quando um deles é flagrantemente pior, a escolha já está previamente posta. Mas e quando você tem a oportunidade de optar pelo bom e pelo bom? Ou entre o bom certo ou pelo extraordinário com risco? É o momento de trazer à decisão dois componentes vitais: a consciência e o coração.

A consciência te situará em frente à dúvida de cabeça erguida. Ela só funciona com absoluta honestidade consigo mesmo, sem preconceitos e premissas preestabelecidas. Ter um momento de presença consciencial não é algo trivial. Exige treinamento. Experimente ter ou imaginar um espelho em frente a você. Fite-o pensando no problema. Percorra mentalmente o caminho A e se observe - sua reação, sua face, sua felicidade; faça o mesmo com o caminho B. Veja qual dos dois se parece mais com quem você sonha em ser e faça sua escolha.

O coração é seu aliado. Ele normalmente é assaltado, subjugado e vilipendiado pelo frio cérebro. Dê a ele a chance de votar internamente. Mesmo pelo que seja ilógico. Leve seu voto em consideração. Por incrível que pareça, ele acerta mais do que o alegado campeão cerebral porque tem menos medo, está mais disposto a correr riscos e os valores externos não lhe pesam tanto.

Quando começar sua estrada escolhida, meu filho, olhe para a outra que deixou de seguir, a abençoe e agradeça a oportunidade de ter podido optar. Pode ser que ela venha a lhe encontrar na frente. Ou pode ser que não a veja mais. Quando a perder de vista, a esqueça. Sua vida será composta pelos caminhos que optou por percorrer e não o contrário.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

A hipocrisia e o recheio nuclear

Filho, a palavra hipocrisia tem sua origem na Grécia antiga: hypokhrinesthai. Era o que o ator fazia no palco do teatro: atuar, interpretar um personagem. Com o tempo, passou a ter uma conotação negativa e ser aplicada a todo fingimento, falsidade, sobre quem se é, o que se pensa, o que se sente e o que se defende de verdade.


Você rapidamente notará que hoje a hipocrisia é a regra geral do relacionamento social e empresarial, representando uma desconexão, uma disruptura, entre o que a pessoa realmente é e o que ela demonstra ser. Alguns argumentam que as normas sociais e códigos corporativos não os permitem mostrar quem verdadeiramente são. É apenas uma meia-verdade.

Decerto que o mundo é altamente quadrado e reage tentando expulsar - às vezes violentamente - toda presença diferente de seu pequeno cardápio pré-cozido de emoções, posturas, religiões, relações humanas, ideologias, etc. Se a Natureza só permitiu a evolução porque sempre foi inclusiva, a sociedade fabricada e controlada, que dá a impressão de "normalidade", só se sustenta pela imutabilidade. Ela te oferece o mar calmo, a vida "normal", onde tudo pode ser previsto e é aceito por todos sem grandes esforços. Por outro lado, é cruel com quem ousa desafiar-lhe a artificial soberania com uma dose, mesmo pequena, de autenticidade e cobra um preço muito alto por ela. Essa é a parte verdadeira da meia-verdade.

A parte falsa é que, no final, "ser ou não ser o ser que se é" é uma decisão individual e, por mais que esperneiem as "instituições sólidas" do conservadorismo, a disposição íntima é terra em que ninguém pisa. Ou seja, mesmo com todos os problemas que ele te gera, você não pode culpar o mundo por ter, eventualmente, optado por uma vida "comum" em detrimento de uma vida livre, autêntica e feliz. Normalmente, a Vida, que não se importa muito com o mundo que criamos, porque o antecede e sobreviverá a ele, nos prega peças que nos coloca frente a frente com quem somos, nos obrigando a nos perguntarmos: "em que momento deixei de ser quem sou?", e, mesmo que não queiramos, revisitamos nossa essência, esquecida por vezes em nossa infância ou adolescência, na inocência, nos sonhos, nas revoltas típicas, e voltamos, membros exemplares da sociedade com um gosto amargo na boca, que engolimos até a próxima acareação conosco mesmos que o Universo certamente promoverá.

Há uma arma, entretanto, que você pode usar e que não é pega nos detectores de metal dos robôs frios da nossa comunidade humana artificialmente fabricada: o que eu chamo de "recheio nuclear". Ele se baseia na pedagogia de Pestalozzi que estabelece que a linguagem precisa ser precedida (chamo "recheada" em seu núcleo), na ordem, por amor e percepção. De outra forma dizendo, meu filho, dê significado às palavras que você profere, primeiro com amor (sinceridade, sentimento, vontade, verdade) e depois com percepção (conhecimento de causa, conveniência, empatia). As palavras vazias reforçam a hipocrisia, as palavras "recheadas" fazem despertar no coração e na mente dos outros sua essência porque lhes toca de verdade - eis a sua arma nuclear.

A outra dica está na imagem que selecionei: os olhos são o "furo" que existe na máscara da hipocrisia. Fite-os, leia-os, dê a eles importância, às vezes maior até do que o que é dito pela boca. Os olhos são a janela que a máscara não consegue tapar. São o ponto frágil. Use-os.

Por fim: a arte normalmente empacota bem os sentimentos e pensamentos "proibidos" pela sociedade plástica que constituímos e que reforça a hipocrisia. Se não conseguir se fazer soar pela racionalidade e pela ação direta, tente através do lúdico. Ele também costuma passar as barreiras de proteção. Nesse sentido, deixo a reflexão de nosso imortal poeta português Fernando Pessoa, em sua genial "Autopsicografia" (uma escrita para si mesmo). Ali ele fala de 5 sentimentos diferentes interpretados e passados pela mesma poesia - tente encontrá-los:

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

domingo, 18 de setembro de 2016

Símbolos

Filho, antigamente, na Grécia, quando dois amigos ou amores se separavam, quebravam uma moeda, um anel ou uma concha ao meio e cada um ficava com uma metade como forma de, olhando a parte visível, lembrarem sempre da parte invisível, que havia ficado longe. Esse é o símbolo (symbolon) que, etimologicamente, significa "aquilo que foi lançado junto". Usamos e abusamos dos símbolos, mas nem sempre lhes damos a atenção que eles merecem.


Você não precisa recorrer ao esoterismo para ter acesso a símbolos importantes. Pelo contrário, os principais e mais relevantes vão te encontrar no seu dia-a-dia. Em primeiro lugar, a esmagadora maioria das comunicações entre as pessoas é, na verdade, simbólica, ou seja, não expressa verbalmente, por escrito, etc. Conscientes ou inconscientes, são as movimentações do corpo, em especial das mãos e da face, com destaque aos olhos, que são cheios de invisível por trás do visível. Quem presta atenção no não-dito entende muito melhor o que é dito.

Outra vertente são os sonhos, que normalmente são simbólicos, porque pela janela da memória não passam percepções estranhas à realidade objetiva, então "empacotamos" (ou "empacotam" para nós) as vivências em "envelopes" que temos mais chance de "receber", sem muita deturpação, quando acordarmos. Com isso, criamos outro problema: interpretar as mensagens, fase que pode gerar alguma confusão. Tenha muita cautela para quem contar seus sonhos por completo - a imensa maioria das pessoas não será capaz de tratá-los com o respeito que merecem. Ao invés disso, tente extrair deles você mesmo a mensagem simbólica e, com cuidado, utilize-a para buscar ajudar.

Todos os símbolos são sinais. Preciso alertá-lo, portanto, para que:
  • Não seja tragado pelo símbolo. Não confunda o símbolo (visível / acessível) com o objeto que ele representa (invisível / inacessível). O símbolo é uma metáfora concreta, serve para obter linhas gerais da "parte faltante", mas não o submeta a uma análise pormenorizada como se estivesse de posse da figura completa. Você vai chegar a conclusões que extrapolam a realidade e isso pode ser perigoso.
  • Quando você estiver recebendo uma figura simbólica (por sonho, por narrativa, fisicamente, não importa), atente aos detalhes esquisitos - aqueles que saltam aos olhos além do que seria esperado. É a forma codificada de chamar atenção a uma parte importante da mensagem: cores muito fortes ou muito diferentes do usual, dimensões desproporcionais, repetições de palavras ou expressões, exageros teatrais de expressões corporais e faciais, animais ou seres estranhos, ações ou cenas de picos emocionais ultra-intensos, etc.
  • Separe a narrativa da interpretação quando for transmitir o símbolo. Num primeiro momento, descreva sem comentários, faça uma leitura técnica, adie o julgamento. Depois de haver perscrutado todas minúcias e formado o quadro, você pode comentar. Por honestidade, deixe claro quando parou de ser mensageiro e quando começou a ser agente ativo na leitura do símbolo.
  • Cuidado com as opiniões de quem não consegue ter pensamento simbólico e confia apenas no que é visível para tirar suas conclusões. É um leitor parcial. Não se deixe contaminar.

Por fim, nem toda realidade completa pode ser representada ou compreendida, de forma que o símbolo é ainda necessário. Conhecê-lo é como segurar a metade da moeda partida e, dela, buscar a outra, inacessível às mãos. É um exercício para toda a vida: execute-o com honestidade e perseverança e as metades perdidas ficarão, cada vez mais, compreensíveis a você.

sábado, 17 de setembro de 2016

O sentimento dos outros nunca é bobagem

Meu filho, certa vez há muitos anos conversando com uma amiga que me falava de problemas que a atormentavam, recebi uma lição que desejo repassar a você. Os assuntos que angustiavam seu coração me pareceram todos menores e não entendia bem a importância que tomaram para deixá-la tão apreensiva. No sentido de transmitir essa visão e aliviá-la, disparei: "Mas isso é bobagem". Ela ficou séria, olhou para mim e disse: "O sentimento dos outros nunca é bobagem", levantou-se e foi embora. Continuamos amigos e já tive a oportunidade de lhe agradecer.


Você tem todo o direito, filho, de querer ou não ouvir alguém. Você não está obrigado a dar atenção a quem quer que seja. Você não está obrigado a demonstrar para ninguém intimidade ou disponibilidade em ajudar. Caso não queira ou não possa oferecer ao interlocutor a atenção que ele espera, seja honesto: "eu gostaria de poder conversar contigo, mas agora não posso, desculpe", "sei que o que você quer falar é importante para você, mas eu não estou num momento que posso dar a atenção que a situação merece. Nós podemos conversar depois", etc.

Você NÃO tem o direito, entretanto, de, em escolhendo dedicar a alguém sua escuta, que lhe abre a intimidade ou deposita em você confiança, tratar irresponsavelmente o que essa pessoa te oferece, seja não dando-lhe atenção, seja minimizando o alcance do problema, seja demonstrando enfado ou cansaço na narrativa.

Temos partes de nós que são fechadas, restritas, são ostras. Guardamos todos nossos segredos. Quando, por confiança, escolhemos alguém para mostrar aquilo que consideramos nossa pérola, essa pessoa não tem o direito de tratar a pérola como um pedaço de pedra. A quebra desse laço sagrado de cumplicidade é dos arranhões mais profundos que se pode fazer na alma do outro, que se abriu e, portanto, está desprotegida para você. Mesmo que sem dolo, é um ato de covardia.

Tenha cuidado, filho, para, por distração ou até de boa fé, não lidar com o devido respeito com algo que é muito caro a alguém de que você gosta. O sentimento dos outros nunca é bobagem.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Timing

Meu filho, tudo na vida tem seu tempo. Há um provérbio árabe que diz: "o maior erro é ou a pressa antes do tempo ou a lentidão ante a oportunidade". Como, então, sincronizar seu relógio interno com o relógio do Universo?


É o professor e filósofo suíço Rudolf Steiner o autor de uma das mais interessantes definições do que é o mal usando o tempo: "o mal é o bem no tempo errado". De fato, perder o timing que as coisas boas pedem pode não só significar um desperdício de oportunidade, mas a realização, mesmo não intencional, de um mal.

A maior atenção com o tempo certo é entre pessoas diferentes. Quando uma pessoa relevante (boa ou má) cruza sua vida, o momento em que se encontraram tem significado. Você pode achar que não é o melhor, você pode querer ter o poder de mandar no tempo da Vida - é seu direito. Mas isso não muda o fato de que a Vida permitiu que vocês estivessem ali, juntos, naquele instante, por um motivo. Esse motivo só existe ali. Pode voltar, transmutado, num tempo futuro, caso um dos dois, pelo menos, opte por continuar sua estrada sem dar a devida atenção agora. Pode. Mas não será o mesmo momento, não serão as mesmas vivências, não serão as mesmas consequências. Mesmo que nada mude em sua trajetória pelos encontros importantes promovidos pelo Universo, dê-lhes a devida atenção, trate-os com o devido respeito e encare-os de frente para que não fiquem mal resolvidos.

Cuidado com a ilusão de que algumas coisas estão no tempo certo. O relógio quebrado está certo sempre duas vezes por dia, e nem por isso deixa de estar quebrado. Olhe com atenção, olhe mais de uma vez para a inércia para não confundi-la com paciência. Não se movimentar perante a vida não é prudência, é covardia. Pessoas que olham apenas para o seu relógio sem se importarem com seu sincronismo com o Mundo normalmente não são boas companhias ou amigas.

Para coisas fundamentais, especialmente as que envolvem sua felicidade, sua realização, sua vocação, quem manda é o relógio da Vida, mesmo que ele marque uma hora diferente da que você gostaria. Sua opção será segui-lo, encontrá-lo, na hora em que ele quiser ou não. Não tente apressá-lo ou atrasá-lo. Além de inefetivo, só gerará sofrimento para você. Quando se quer viajar de avião, você chega com antecedência no aeroporto e espera o avião lá, não é? Mas o voo é às 3 da manhã? É. Você tem a opção de ir de carro, de ônibus, de carona, de barco, ou não ir. Mas o avião não vai te esperar. Não adianta depois ir correndo atrás dele na pista. Perdeu, perdeu.

É lícito buscar amenizar aquilo que te traz dor, mas tenha sabedoria de entender seu limite para tentar. Há tempo de intervir e há tempo de aceitar, aproveitando o tempo para meditar, planejar, promover mudanças internas de disposições. Não bata no mundo fora do tempo - além de insensível à sua revolta, isso só fará com que você perca mais tempo. Respeite o que você não pode mudar agora. O futuro trará novas chances.

Por fim, na dúvida, faça. Entre o risco de por pressa ou por lentidão, entre a inércia e a ação, penda para a ação. Relógio parado enferruja e quando a Mão do Universo vier forçá-lo a se movimentar novamente (e ela não falha), arrancará um pouco de ferrugem a custa de algum sofrimento. Enquanto você estiver buscando acertar seu timing com o timing da Vida, ela reconhecerá seu esforço e você manterá suas engrenagens lubrificadas e prontas para te trazerem surpresas e alegrias, na hora certa, e que são o brilho da existência. Errar é normal; desistir de acertar é imperdoável.

A felicidade é resultado de uma caminhada com os passos dados no tempo certo, não necessariamente no mais conveniente.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Corcéis internos

Filho, você descobrirá ainda cedo que existem dentro de nós forças poderosas, algumas selvagens, com o poder de nos incomodar, de nos movimentar, de mexer conosco, para o bem ou para o mal: são os nossos corcéis internos.


Para saber como lidar com eles, é antes necessário que você os conheça. Esta a primeira lição: seja de que tipo forem, desejem o que desejarem, bons ou maus, sempre, sempre, os encare de frente. Por mais nervosos, fortes e indomáveis que pareçam, olhe-os nos seus olhos. Se estiverem escondidos em algum recanto de sua alma, não caia na tentação de deixá-los esquecidos - retire-os de lá, lance sobre eles a luz da consciência. Não tenha medo. Trancafiar um corcel pode parecer uma solução a princípio, mas no fim, quando precisar revisitar aquele cômodo, verá a extensão da destruição que ele causou, descontroladamente.

Você perceberá que os corcéis internos são basicamente de dois tipos: os que vêm do passado e os que chamam para o futuro. Os primeiros respondem por nossas tendências, nossos instintos, nossos vícios e virtudes - desejam fazer com que você continue sendo guiado por eles, como ocorreu até então. Os segundos são mais resolutos e te levam ao porvir, à mudança: são os mais difíceis de domar porque não respeitam convenções exteriores. São desses últimos o que chamo de corcel-ouro: do tipo do futuro que tem por destino direto sua vocação, seu amor, sua felicidade, mesmo que você não queira.

Você deverá decidir o que fazer dependendo do caso. Sob a luz da honestidade, veja, pense, sinta e aja. Empenhe seu coração verdadeiramente nesse julgamento - ele será mais útil a você com os corcéis do que seu cérebro, acredite em mim. Em resumo, você pode:

  • Ignorá-los. Se ignorá-los, eles farão uma bagunça imensa na sua casa interior. É sempre uma má ideia.
  • Deixá-los te pisotear. A passividade total perante eles é a fraqueza de sua condição humana. É aqui que residem frases do tipo: "a carne é fraca". Outra péssima ideia deixá-los fazer o que quiserem com você.
  • Vigiá-los. Quando não representam perigo ou ganho, apenas uma característica que te parece quase indiferente ou divertida. Deixe que caminhem à vontade, façam suas gracinhas, desde que não ultrapassem o limite do razoável. Convém de vez em quando mostrar a eles quem manda.
  • Domá-los. Domestique-os quando aquela tendência não fizer mais sentido e estiver te prendendo a algo que não faz mais parte de sua vontade de progredir. Atenção: apenas os corcéis do passado podem ser domados. Os do futuro muito dificilmente.
  • Montá-los e guiá-los. Tome as rédeas quando desejar colaborar com o corcel, cavalgar com força e coração dele, mas sua direção, sua mente. Isso te trará uma amizade com seu corcel interior que durará para a eternidade.
  • Montá-los e deixá-los te guiar. Só faça isso se souber aonde eles querem te levar. É a maneira mais libertadora, rápida e plena de cavalgar. Mas experimente-os primeiro com a sensibilidade do seu coração. Atenção: essa é a única forma de montar o corcel-ouro.

Por fim, deixe te falar do corcel-ouro: ele é arredio, inconveniente, insistente, normalmente não respeita em absoluto hora nem situação, e é raríssimo - às vezes só te encontra uma vez na vida. Não que você não possa ser feliz sem tê-lo montado - a imensa maioria das pessoas que vive uma vida que consideram boa caminharam sem ele. Mas você distinguirá os que tiveram a coragem de cavalgá-lo por seus sorrisos contagiantes, pelo brilho verdadeiro em seus olhos, por sua cumplicidade que dispensa palavras, por sua liderança inspiradora, por sua coragem de amar, por suas mãos de serviço efetivo em benefício do mundo. Estes não só apenas felizes: são plenos. São livres.

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

A verdade

Meu filho amado, verdade é dos mais importantes conceitos para se conhecer e de se praticar. É uma das poucas palavras da língua portuguesa que tem raiz tripla no grego (aletheia), no latim (veritas) e do hebraico (emunah). Cada uma dessas bases etimológicas fala um pouco sobre ela: no grego, o conceito é o do presente, da realidade objetiva, do que é hoje; no latim, do passado, do que foi, da história, do caminho; finalmente, no hebraico refere-se à esperança no futuro, à clareza do porvir, da confiança no que virá. Ela abraça, portanto, toda a vida. Convém usá-la com sabedoria.


Em primeiro lugar, seja um defensor ferrenho da verdade. Usá-la obstinadamente, como uma marca de sua personalidade, vai requerer muita resiliência para se machucar porque o mundo não a tem como valor básico e ela choca os aceitos em uma sociedade superficial. Para que você não desista dela e caia na tentação de percorrer os caminhos mais simples do fingimento, da mentira, da falsidade, da omissão, da covardia, da fuga, ou, sem dolo, do auto-engano, é preciso que você seja inflexível em adotá-la como bandeira de vida. Mas como fazer isso? Deixo algumas dicas a você com a ajuda do poeta indiano Gibran Khalil Gibran, que tantos pensamentos sobre a verdade nos deixou:
  • Atente à forma de falar a verdade para que ela seja útil e provoque o menor número possível de sofrimentos desnecessários. A mesma verdade pode ser dita de diversas maneiras. Quanto mais você treinar em utilizá-la como ferramenta, mais a conhecerá e saberá trabalhar com ela no formato correto. "Se precisar disparar a flecha da verdade, não se esqueça de primeiro molhar a sua ponta no mel." (Gibran)
  • Regule a verdade em doses dependendo do seu interlocutor ou da circunstância. Nem tudo precisa ser dito de uma única vez ou a todo mundo. Use o dosador da utilidade e da capacidade de seu interlocutor lidar com as consequências dela. Mas atenção: sem jamais recorrer à mentira. "Uma verdade é para ser conhecida sempre. Dita, às vezes." (Gibran)
  • Toda meia-verdade é também uma meia-mentira. A verdade não admite mistura com a mentira, em nenhum grau. Eu disse: em nenhum grau. Não se engane nem iluda os outros.
  • A verdade não resiste à luz. Lance luz sobre um fato, desapaixonadamente, e a verdade emerge. Luz significa: esteja pronto para vê-la, mesmo que ela contrarie suas vontades, seus preconceitos, seus desejos, seus pontos de vista. Esteja aberto de coração e ela se mostrará a você - e algumas vezes irá surpreendê-lo.
  • A extrapolação da verdade é sempre uma mentira. Verdade pressupõe simplicidade. "O exagero é uma verdade que perdeu sua calma." (Gibran)
  • A verdade precisa ser buscada por vontade própria. Você não tem o direito de impô-la a quem não a deseja ainda. Cada ser tem seu tempo para (re)conciliar-se com ela.
  • Muitas pessoas criam, às vezes inconscientemente, cenários ilusórios para si próprias com o objetivo de se proteger. Nem toda mentira é motivada pela má-fé. Quando for uma pessoa que esteja perdida, assim, em meio à própria verdade, ajude-a a se achar, a se reencontrar. "A verdade de outra pessoa não está no que ela te revela, mas naquilo que não pode revelar-te. Portanto, se quiseres compreendê-la, não escute o que ela diz, mas antes, o que ela não diz." (Gibran)
  • Quem mente para os outros é porque, normalmente, mente antes para si. É antes um doente do que um mau. Seja compreensivo e não condene quem não adotou ainda a verdade como valor. A verdade não tem pressa, porque tem convicção que chegará para todos, inexoravelmente, cedo ou tarde.

Por fim, meu filho, entenda que não há opção digna à verdade. Você não é obrigado a falar a verdade, mas se não quiser ou não puder dizê-la, seja sincero: "não quero / posso / me sinto à vontade para te responder neste momento" e não ceda à insistência.

A verdade foi feita com o objetivo de sermos nós mesmos, sem amarras, sem medos, de nos aceitarmos e, com isso, podermos ser agentes de transformação do mundo. É um diamante se bem usada e um fardo se maltratada. Só entendendo esse papel sublime da verdade, você poderá entender o que nos ensinou o grande rabino Jesus: "Conhecereis a verdade e a verdade vos fará livres", porque ela honra e valida seu passado, firma e guia seu presente e pavimenta com robustez o seu futuro.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Significante e significado: "por causa da cor do trigo"

Meu filho, o que um lápis, uma janela, um sapato ou uma máquina de café expresso - mesmo que você não goste de café - dizem para você? Se você colocar muitas pessoas em uma sala, você terá muitas reações diferentes frente aos mesmos objetos ou situações. De onde vem essa diferença, como entendê-la e influenciá-la?


O significante é o que dá o significado a cada coisa e ele não necessariamente tem relação com essa coisa em si. Se a casa em que você nasceu tinha paredes verdes e você viveu ali grandes experiências com pessoas amadas, vai reviver, mesmo instintivamente, esse carinho quando estiver em um cômodo verde; se você sofreu uma grande perda em um domingo, é possível que guarde sempre uma sensação ruim daquele dia da semana; e assim por diante. O significado tem a ver com a sua interação com aquela realidade objetiva e encontra eco no que você fez ou sofreu na presença daqueles itens ou ações que, em princípio, são frios. Isto é traço da sua própria humanidade: nenhuma máquina consegue reproduzir.

Foi Antoine de Saint-Exupéry em seu imortal "O pequeno príncipe" que resumiu bem, na fala do príncipe para a raposa, o que é significado:

"Vês, lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim não vale nada. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos dourados. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo, que é dourado, fará com que eu me lembre de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo..."

Guarde na sua memória os detalhes daquilo que te marcar emocionalmente sempre que puder. Atribua você significado às coisas, fruto de sua atenção, seu respeito, sua ação consciente. Se você não o fizer, ele ficará marcado em você sem controle, por automatismo, o que é péssimo e gera traumas difíceis de serem diagnosticados.

Não se esqueça de ressignificar tudo de vez em quando. Dê chance para o que te causa mal estar e não se prenda excessivamente ao que te dá prazer. É fundamental que você não esqueça que o objeto é o objeto e o que te causa horror ou adoração não é o objeto em si, mas sua essência.

Tire "fotos" de eventos, locais, coisas e pessoas, guarde-as em sua memória, mas não se esqueça que, por trás delas, há pensamentos, sentimentos e vida e é isso que faz você amá-las. Você vê significado porque enxerga o significante.

Por fim: desfrute, se deleite com os significados nas pequenas coisas que te fazem bem. Tendo o devido cuidado de não idolatrá-las, elas serão para você magia e poesia, a relembrar e fazer reviver as luzes da sua vida.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

O passarinho da perna azul

Filho, era uma vez um passarinho que nasceu diferente: ele tinha uma perna azul. Procurava ser igual aos outros, e, para isso, escondia sua perninha diferente e, assim, vivia bem. Mas sua perna azul era engraçada: de vez em quando, o conduzia, sem que ele quisesse, a dançar e outras vezes lhe dava tantas cócegas que o levava a rir e cantar bem alto.


O passarinho cresceu, se desenvolveu, aprendeu a voar, como os outros. Vivia com sua perna azul uma relação de amor e ódio: ora a escondia, ora gargalhava com ela. Durante um voo, feliz, enquanto brincava com sua perninha, ele acabou se machucando quando se chocou com outro pássaro.

Um passarinho mais velho, um tanto rabugento, lhe deu a solução:

- É essa perna azul que está lhe fazendo mal! Vê os outros pássaros? Eles acordam, se alimentam, dormem, e são felizes. Há comida farta aqui. Para que voar, cantar e ... dançar tanto? Para se machucar de novo?

Convencido e decidido, o pássaro então enfaixou a perna azul bem forte para que até ele próprio esquecesse que ela existia. E não voou mais. Construiu um ninho muito bonito, bem acabado, protegido, limpo, reluzente. Era o mais belo dos ninhos, inspirava os mais jovens, orgulhava a família, trazia para ele a sensação de paz. Mas seria surpreendido...

Depois de muito tempo, a perna azul começou como que a ter vontade própria. O conduzia, sem que ele quisesse, à beira do ninho, empurrando-o para cair e voar, dava pequenas piruetas com ele quando estava distraído, para susto de todos que nem sabiam o que acontecia. Ele começou a lutar contra a perninha azul e amaldiçoá-la. Quando ela estava em silêncio, ele se convencia de que amarrá-la tinha sido sua decisão mais sábia; quando ela se manifestava, uma felicidade interna tomava conta dele, e ele se via cantando, voando e dançando, para logo se endireitar novamente.

O fim desta história, filho, você vai ter que construir. Seu caminho quem faz é você. Você e sua perninha azul, se você a deixar respirar.

(OBS: não, eu não errei o setênio)

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Lei de Destruição

Meu filho, nossa capacidade de evolução por vontade própria é muito pequena. Somos muito apegados ao que (pensamos que) conhecemos, ao que (pensamos que) temos. Como consequência, desenvolve-se em nós, instintivamente, o medo da mudança, o pavor do desconhecido. Felizmente a vida não se importa muito para isso e constantemente nos impõe saltos, quebras, revoluções, destruições...


Em 79 a.C. o vulcão do monte Vesúvio, na Itália, entrou em erupção e submergiu por completo a cidade de Pompeia na lava. Esse evento ficou conhecido porque os que tentaram escapar foram carbonizados pelo calor extremo e pela cinza e se tornaram "fósseis" na posição em que morreram.

Quantas vezes também construímos nossos castelos particulares e nossas "pompeias" para acomodar nossas certezas? Quantos muros erguemos em torno deles, buscando preservar-lhes das intempéries da vida, em nome da "segurança"? Logo ali atrás estão os vesúvios, prontos a explodir sobre nossos sonhos congelados, muitos ultrapassados, outros já inúteis.

Mas nem tudo na erupção vulcânica é devastador. Após transformar em cinzas nossas "casas", os irônicos e impertinentes vulcões da vida nos presenteiam com o solo mais fértil que se conhece, facilitando a reconstrução no lugar onde nada mais existe, com força, vitalidade, aprendizado e diferença. Após o período de turbulência, trabalho e sofrimento, a nova "cidade", mais pungente, mais feliz, em nada lembrará a antiga que lhe serviu de adubo. O que foi destruição ontem, hoje é renovação.

Deixo a você, meu filho, em primeiro lugar o alerta: se você souber identificar os sinais de necessidade de transformação, a vida não precisará devastar sua terra a toda hora. Esteja pronto a ver e se reinventar. Seja dócil à constante mensagem de impermanência da vida. As grandes quebras normalmente só aparecem depois de várias pequenas terem sido ignoradas.

Por fim, tenha sabedoria para identificar o momento de transformar. Nem tudo precisa ser destruído. Nem toda árvore precisa ser substituída, principalmente se ela não deu frutos ainda. Não caia na tentação do caminho fácil do que é cômodo nem na vida estéril da destruição sem motivo. Reflita, decida e siga. Mas se o monte vesúvio explodir, não tente deter sua lava. Prepare-se para, outra e outra vez, reconstruir com fé, perseverança e honestidade.

E seja grato ao Universo por queimar suas casas velhas. Tenha seu luto, chore por elas, mas não tenha medo de se debruçar sobre o solo novo para continuar seu trabalho de desenvolvimento.