À guisa de introdução


Este é um espaço de coleção de pensamentos para meu filho Antonio.

Categorizei as postagens por fase da vida em que imagino que serão úteis a ele, divididas em períodos de 7 anos. Assim, onde estiver marcado "1setenio" são para de 0 a 7 anos, "2setenio" para 7 a 14, e assim por diante.


segunda-feira, 19 de setembro de 2016

A hipocrisia e o recheio nuclear

Filho, a palavra hipocrisia tem sua origem na Grécia antiga: hypokhrinesthai. Era o que o ator fazia no palco do teatro: atuar, interpretar um personagem. Com o tempo, passou a ter uma conotação negativa e ser aplicada a todo fingimento, falsidade, sobre quem se é, o que se pensa, o que se sente e o que se defende de verdade.


Você rapidamente notará que hoje a hipocrisia é a regra geral do relacionamento social e empresarial, representando uma desconexão, uma disruptura, entre o que a pessoa realmente é e o que ela demonstra ser. Alguns argumentam que as normas sociais e códigos corporativos não os permitem mostrar quem verdadeiramente são. É apenas uma meia-verdade.

Decerto que o mundo é altamente quadrado e reage tentando expulsar - às vezes violentamente - toda presença diferente de seu pequeno cardápio pré-cozido de emoções, posturas, religiões, relações humanas, ideologias, etc. Se a Natureza só permitiu a evolução porque sempre foi inclusiva, a sociedade fabricada e controlada, que dá a impressão de "normalidade", só se sustenta pela imutabilidade. Ela te oferece o mar calmo, a vida "normal", onde tudo pode ser previsto e é aceito por todos sem grandes esforços. Por outro lado, é cruel com quem ousa desafiar-lhe a artificial soberania com uma dose, mesmo pequena, de autenticidade e cobra um preço muito alto por ela. Essa é a parte verdadeira da meia-verdade.

A parte falsa é que, no final, "ser ou não ser o ser que se é" é uma decisão individual e, por mais que esperneiem as "instituições sólidas" do conservadorismo, a disposição íntima é terra em que ninguém pisa. Ou seja, mesmo com todos os problemas que ele te gera, você não pode culpar o mundo por ter, eventualmente, optado por uma vida "comum" em detrimento de uma vida livre, autêntica e feliz. Normalmente, a Vida, que não se importa muito com o mundo que criamos, porque o antecede e sobreviverá a ele, nos prega peças que nos coloca frente a frente com quem somos, nos obrigando a nos perguntarmos: "em que momento deixei de ser quem sou?", e, mesmo que não queiramos, revisitamos nossa essência, esquecida por vezes em nossa infância ou adolescência, na inocência, nos sonhos, nas revoltas típicas, e voltamos, membros exemplares da sociedade com um gosto amargo na boca, que engolimos até a próxima acareação conosco mesmos que o Universo certamente promoverá.

Há uma arma, entretanto, que você pode usar e que não é pega nos detectores de metal dos robôs frios da nossa comunidade humana artificialmente fabricada: o que eu chamo de "recheio nuclear". Ele se baseia na pedagogia de Pestalozzi que estabelece que a linguagem precisa ser precedida (chamo "recheada" em seu núcleo), na ordem, por amor e percepção. De outra forma dizendo, meu filho, dê significado às palavras que você profere, primeiro com amor (sinceridade, sentimento, vontade, verdade) e depois com percepção (conhecimento de causa, conveniência, empatia). As palavras vazias reforçam a hipocrisia, as palavras "recheadas" fazem despertar no coração e na mente dos outros sua essência porque lhes toca de verdade - eis a sua arma nuclear.

A outra dica está na imagem que selecionei: os olhos são o "furo" que existe na máscara da hipocrisia. Fite-os, leia-os, dê a eles importância, às vezes maior até do que o que é dito pela boca. Os olhos são a janela que a máscara não consegue tapar. São o ponto frágil. Use-os.

Por fim: a arte normalmente empacota bem os sentimentos e pensamentos "proibidos" pela sociedade plástica que constituímos e que reforça a hipocrisia. Se não conseguir se fazer soar pela racionalidade e pela ação direta, tente através do lúdico. Ele também costuma passar as barreiras de proteção. Nesse sentido, deixo a reflexão de nosso imortal poeta português Fernando Pessoa, em sua genial "Autopsicografia" (uma escrita para si mesmo). Ali ele fala de 5 sentimentos diferentes interpretados e passados pela mesma poesia - tente encontrá-los:

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

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